Em “O mito de Sísifo”, Albert Camus alega que a questão crucial da filosofia é: vale a pena para o ser humano, ao constatar a realidade que se lhe oferece, viver? Ou seria melhor matar-se? O existencialista francês é enfático ao afirmar que o suicídio não é o caminho para fugir do sofrimento. Isso porque buscar a morte é imaginar que algo pode ser melhor que a vida; é ter esperança de que a dor acabará. Ora, a esperança já não nos cabe, mas sim o absurdo.
Há pouco mais de um ano, surgia como antagonista da narrativa humana o novo coronavírus. Dentre todos os problemas pelos quais nós, brasileiros, temos passado nos últimos tempos, jamais se poderia crer que a Covid-19 chegaria para tomar cena e, como numa novela das nove em que a audiência está em queda, mudasse completamente o enredo para clamar por uma atenção que estava voltada a uma figura malfazeja, deselegante e nada carismática. Como se tal épico às avessas pudesse piorar, esse personagem, com medo da deposição, decidiu aliar-se à trama do novo vilão. Desde então, nossas vidas, de cinza, chegaram ao extremo breu. Sozinhos no escuro, qual bichos-do-mato.
No início, o histórico cristão, o romantismo, o excesso de literatura distópica de má qualidade nos fez pensar que a chama da comunhão, o amor entre os semelhantes e a coragem nos salvariam do mal que nos rondava. Mas não tardamos a perceber que os tentáculos daquilo que enfrentamos eram compostos por muitos mais do que supúnhamos, uma evolução antropomórfica de Cthulhu, o horror que nem Lovecraft poderia criar.
Mas não se trata apenas de descrença, já que a fé, a esta altura, é pura ignorância. Simplesmente a vida como ela é. E agora? Não adianta querer morrer em um mar de lágrimas. Não adianta querer fugir no cavalo amarelo. O que nos sugere então Camus sobre vivermos embebidos no licor venenoso da trágica condição humana? Resistir. Foi o que fez Sísifo, ao ser condenado a carregar aquela pedra pela eternidade, afinal, “não há destino que não se supere com o desprezo”.
Imaginemos a insatisfação dos ególatras deuses do Olimpo ao verem sua criatura negando-se a sofrer com o castigo que lhe impuseram. Falcão, ex-líder do grupo O Rappa, grita a essência do homem absurdo camuniano, sua vontade era de “explodir”, ele “ia explodir, mas eles não vão ver os meus (os nossos) pedaços por aí”. Enquanto resistirmos, eles, esses abutres que hoje nos rodeiam, passarão.
Viver no absurdo é constatar a realidade e enfrentá-la. Da maneira que quiser, mas enfrentá-la. No meu caso, opto pelo que sugeriu o agora saudoso Paulo Gustavo, rindo. Assim como Sísifo despertou a ira dos deuses que não o puderam vencer nem mesmo com a pena eterna, nos meus (nos nossos) algozes desejo identificar o semblante rancoroso dos que, ao descobrirem que o mundo, apesar de suas enfadonhas tentativas, um dia (não sei quando) voltará a ser uma mistura de cores, culturas, valores, risos e vidas que eles tanto julgam degenerados. A essas pedras, no caminho e sobre nossas costas, deixo o meu mais mordaz e singelo riso de deboche, porque sei que, apesar delas, amanhã é outro dia.
*Mateus Senna Favero é professor e corretor de Redação do Ensino Médio do Colégio Positivo.
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